Alice sabia exatamente a hora que o trem chegava e partia. Essa era a única
forma que possuía de chegar em casa. Esse conhecimento era vital para sua
sobrevivência. Não era do feitio de Alice exagerar e fazer dramas, mas ela
levava muito a sério o fato de que precisava chegar nos lugares na hora certa e
que não queria perder um minuto a mais na rua. A não ser que precisasse ou que
fosse para alguma diversão bem boa.
Alice não gostava de ficar andando pela cidade de farda. Tinha a impressão
de que todo mundo iria saber um pouco sobre sua identidade e ela não saberia a
de ninguém. Ao mesmo tempo, tinha um orgulho imenso de poder dizer “sou
estudante”. Alice amava estar na escola e estudar. Amava inteira e
completamente. Não que ela fosse boa em tudo ou super estudiosa e cheia de
notas boas. Ela era uma aluna ok, sem grandes extremos. Era muito excelente em
português e ingles, boa em história e geografia, ok em química e um fiasco em
física e matemática. Alice lembra até do dia que tirou 1,0 em física e a prova
valia 10. Mas, no final do ano, Alice sempre estava aprovada. Ela até se achava
inteligente em alguns momentos. De qualquer maneira, ela operava milagres
naquele boletim.
A sua mãe não ligava muito para as suas notas. Quem se importava com isso
era ela mesma. Então, fazia todo um esquema mental para recuperar as notas na
terceira e na quarta unidades. E, claro, sempre é a queridinha dos professores.
O conselho de classe adora ela. Então, aqueles dois, três décimos estão sempre
garantidos.
Ôpa, vai desculpando aí! - muito de repente, uma menina se esbarrou em Alice
quase já na porta da estação de trem. Doeu a beça. Mas, ela nem teve tempo de
reclamar. A garota passou velozmente, deixando impossível existir algum espaço
para indignação.
A estação estava bastante vazia. Uma surpresa para Alice. Aquilo ali era um
inferno no horário de almoço. Era mãe com menino para um lado, equipe de
trabalho para o outro, não sei quantos vendedores ambulantes.
A sua barriga roncou quando pensou nesta última parte de transeuntes da
estação. Bem que um ambulante poderia estar por ali. Eles têm o salgadinho
preferido de Alice. Ela gosta daqueles bem pebas mesmo, que grudam no dente e
na parede do estômago. Mas, ela prefere comê-los em casa, porque dá para lamber
os dedos. Na Estação, se ela fizer isso, vira alguma super heroína, com
certeza, porque cada corrimão dali é mais radioativo do que o outro.
“Qual super-heroína eu seria se eu lambesse minha mão de salgadinho e fosse
contaminada pela radiação bacteriana da estação de trem? A super menina
radioativa? Chernogirl?” - os pensamentos corriam soltos na mente de Alice,
quando ela percebeu que seu trem já estava ali e precisou apertar o passo,
porque ele já dava sinal que iria partir.
Estava tudo muito estranho naquele dia. Alice tinha certeza que havia
chegado cedo por ali. Mas, parecia estar atrasada o tempo inteiro. Ainda teve a
garota que esbarrou nela. Alice acariciou o ombro quando lembrou do encontrão
que ocorreu um pouco mais cedo. Doía ainda o ombro direito.
Ela sentou na cadeira do trem fazendo um pouco de massagem no ombro.
- Dia difícil? - perguntou a menina do seu lado. Alice respirou para
responder e contar sobre a garota impossível que se bateu nela e nem pediu
desculpas, como estava doendo seu ombro e como a jovem nem tinha pedido
desculpas.
Mas, quando levantou os olhos se deu conta de que estava sentada bem ao lado
da “esbarrona” e a única coisa que conseguiu dizer foi:
- Hum rum. Daqueles!
- Gostei do seu brinco - disse a “esbarrona”, mudando de assunto -, você
gosta de Harry Potter?
- Hum rum. Demais. - o coração de Alice deu uma leve palpitada. Quantas
pessoas no mundo sacariam que ela estava usando um brinco do livro do Príncipe
Mestiço, aka Snape, em plena estação de trem e teria menos do que 30 anos? Quer
dizer, aquela garota parecia ter a sua idade, no máximo 16, 17 anos.
- Eu sou Corvinal, mas respeito todas as casas. Entendo quem gosta da
Sonserina. É uma casa de muito mistério!
- É... Né? Mistério total...
Silêncio. Alice se sentia uma total idiota. Ali estava uma menina
perfeita em sua frente e ela só conseguia dizer duas ou três palavras. O que a
“esbarrona” iria pensar? Provavelmente, teria certeza de que Alice não queria
papo e iria se calar. Acharia Alice uma chata, uma metida, uma boboca ou uma
noob no universo fantástico harry potterniano.
Minha estação! - exclamou a “esbarrona”. Alice viu tudo em câmera lenta a
partir daquele momento. Seus pensamentos, no entanto, pareciam estar mais
acelerados. Enquanto sua companheira de viagem se ajeitava para levantar,
pegava suas coisas e apertava o sinal de parada, Alice lembrava que não sabia o
nome da menina e que, com certeza, precisava de algo melhor que “esbarrona”
para se referir a ela.
Pior!!! Alice imaginou que existia a possibilidade delas nunca mais se verem
na vida! Tudo porque ela era uma bobona que não conseguia formar uma frase
sequer. “Esbarrona”, olha o nome que ela inventou para a garota! Quanta tolice!
E sua fome começou a se transformar em enjoo. Precisava respirar e não achava
ar. Enquanto vivia a sua angústia dilacerante e nauseante, a jovem disse mais
uma coisa enquanto se encaminhava para a porta de saída:
- @corvinalsoueu ! Me adiciona no Twitter. Prometo que sou legal e só falo
besteira por lá.
Disse tudo isso e PISCOU! Ela PISCOU para Alice. As portas do vagão se
abriram e “@corvinalsoueu” saiu do trem. Ela ainda se virou, esperou as portas
se fecharem e ficou olhando para Alice, sorrindo e dando tchau. O celular de
Alice vibrou e ela olhou para baixo uns instantes, segundos. Foi apenas o tempo
de ver que eram 12h45. Ela havia saído mais tarde do colégio porque ficou
conversando com a professora de inglês depois da aula. Agora, a estação vazia
fazia todo sentido.
“Não acredito que errei o horário depois de tantos anos pegando o mesmo
trem!” - pensou Alice, com um sorriso enorme no rosto. Quem sabe amanhã eu não
erro de novo?