quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A



Alice sabia exatamente a hora que o trem chegava e partia. Essa era a única forma que possuía de chegar em casa. Esse conhecimento era vital para sua sobrevivência. Não era do feitio de Alice exagerar e fazer dramas, mas ela levava muito a sério o fato de que precisava chegar nos lugares na hora certa e que não queria perder um minuto a mais na rua. A não ser que precisasse ou que fosse para alguma diversão bem boa. 

Alice não gostava de ficar andando pela cidade de farda. Tinha a impressão de que todo mundo iria saber um pouco sobre sua identidade e ela não saberia a de ninguém. Ao mesmo tempo, tinha um orgulho imenso de poder dizer “sou estudante”. Alice amava estar na escola e estudar. Amava inteira e completamente. Não que ela fosse boa em tudo ou super estudiosa e cheia de notas boas. Ela era uma aluna ok, sem grandes extremos. Era muito excelente em português e ingles, boa em história e geografia, ok em química e um fiasco em física e matemática. Alice lembra até do dia que tirou 1,0 em física e a prova valia 10. Mas, no final do ano, Alice sempre estava aprovada. Ela até se achava inteligente em alguns momentos. De qualquer maneira, ela operava milagres naquele boletim.  

A sua mãe não ligava muito para as suas notas. Quem se importava com isso era ela mesma. Então, fazia todo um esquema mental para recuperar as notas na terceira e na quarta unidades. E, claro, sempre é a queridinha dos professores. O conselho de classe adora ela. Então, aqueles dois, três décimos estão sempre garantidos. 

Ôpa, vai desculpando aí! - muito de repente, uma menina se esbarrou em Alice quase já na porta da estação de trem. Doeu a beça. Mas, ela nem teve tempo de reclamar. A garota passou velozmente, deixando impossível existir algum espaço para indignação. 


A estação estava bastante vazia. Uma surpresa para Alice. Aquilo ali era um inferno no horário de almoço. Era mãe com menino para um lado, equipe de trabalho para o outro, não sei quantos vendedores ambulantes. 

A sua barriga roncou quando pensou nesta última parte de transeuntes da estação. Bem que um ambulante poderia estar por ali. Eles têm o salgadinho preferido de Alice. Ela gosta daqueles bem pebas mesmo, que grudam no dente e na parede do estômago. Mas, ela prefere comê-los em casa, porque dá para lamber os dedos. Na Estação, se ela fizer isso, vira alguma super heroína, com certeza, porque cada corrimão dali é mais radioativo do que o outro. 

“Qual super-heroína eu seria se eu lambesse minha mão de salgadinho e fosse contaminada pela radiação bacteriana da estação de trem? A super menina radioativa? Chernogirl?” - os pensamentos corriam soltos na mente de Alice, quando ela percebeu que seu trem já estava ali e precisou apertar o passo, porque ele já dava sinal que iria partir. 

Estava tudo muito estranho naquele dia. Alice tinha certeza que havia chegado cedo por ali. Mas, parecia estar atrasada o tempo inteiro. Ainda teve a garota que esbarrou nela. Alice acariciou o ombro quando lembrou do encontrão que ocorreu um pouco mais cedo. Doía ainda o ombro direito. 

Ela sentou na cadeira do trem fazendo um pouco de massagem no ombro. 




- Dia difícil? - perguntou a menina do seu lado. Alice respirou para responder e contar sobre a garota impossível que se bateu nela e nem pediu desculpas, como estava doendo seu ombro e como a jovem nem tinha pedido desculpas.

Mas, quando levantou os olhos se deu conta de que estava sentada bem ao lado da “esbarrona” e a única coisa que conseguiu dizer foi:

- Hum rum. Daqueles! 

- Gostei do seu brinco - disse a “esbarrona”, mudando de assunto -, você gosta de Harry Potter? 

- Hum rum. Demais. - o coração de Alice deu uma leve palpitada. Quantas pessoas no mundo sacariam que ela estava usando um brinco do livro do Príncipe Mestiço, aka Snape, em plena estação de trem e teria menos do que 30 anos? Quer dizer, aquela garota parecia ter a sua idade, no máximo 16, 17 anos. 

- Eu sou Corvinal, mas respeito todas as casas. Entendo quem gosta da Sonserina. É uma casa de muito mistério! 

- É... Né? Mistério total...

Silêncio. Alice se sentia uma total idiota. Ali estava uma menina perfeita em sua frente e ela só conseguia dizer duas ou três palavras. O que a “esbarrona” iria pensar? Provavelmente, teria certeza de que Alice não queria papo e iria se calar. Acharia Alice uma chata, uma metida, uma boboca ou uma noob no universo fantástico harry potterniano. 

Minha estação! - exclamou a “esbarrona”. Alice viu tudo em câmera lenta a partir daquele momento. Seus pensamentos, no entanto, pareciam estar mais acelerados. Enquanto sua companheira de viagem se ajeitava para levantar, pegava suas coisas e apertava o sinal de parada, Alice lembrava que não sabia o nome da menina e que, com certeza, precisava de algo melhor que “esbarrona” para se referir a ela. 

Pior!!! Alice imaginou que existia a possibilidade delas nunca mais se verem na vida! Tudo porque ela era uma bobona que não conseguia formar uma frase sequer. “Esbarrona”, olha o nome que ela inventou para a garota! Quanta tolice! E sua fome começou a se transformar em enjoo. Precisava respirar e não achava ar. Enquanto vivia a sua angústia dilacerante e nauseante, a jovem disse mais uma coisa enquanto se encaminhava para a porta de saída: 

- @corvinalsoueu ! Me adiciona no Twitter. Prometo que sou legal e só falo besteira por lá.

Disse tudo isso e PISCOU! Ela PISCOU para Alice. As portas do vagão se abriram e “@corvinalsoueu” saiu do trem. Ela ainda se virou, esperou as portas se fecharem e ficou olhando para Alice, sorrindo e dando tchau. O celular de Alice vibrou e ela olhou para baixo uns instantes, segundos. Foi apenas o tempo de ver que eram 12h45. Ela havia saído mais tarde do colégio porque ficou conversando com a professora de inglês depois da aula. Agora, a estação vazia fazia todo sentido. 

“Não acredito que errei o horário depois de tantos anos pegando o mesmo trem!” - pensou Alice, com um sorriso enorme no rosto. Quem sabe amanhã eu não erro de novo?

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário