sábado, 29 de agosto de 2020

Sísifo

 Morte – Wikipédia, a enciclopédia livre

Imersa nesse seu cotidiano tão particular, os dias parecem fragmentados por uma lógica peculiar, que só existe no universo que criou em sua mente. Ao mesmo tempo, toda a vida pregressa que habitava o campo das certezas também parece fantasiada. É como se todos aqueles mundos seus nunca tivessem pertencido a ela. É confuso tentar colocar em palavras um sentimento não palpável, mas que transmite tanta dor e sofrimento. É como se nem juntar frases soltas, de sua cabeça confusa, fosse mais possível.

De fato, é uma outra pessoa. Reconhece e admite, bem baixinho, que, talvez, a lucidez tenha partido em um trem que não faz o caminho de volta. Quem era aquela menina pulante, que agora vislumbra somente em seus sonhos? Quando ficou turvo quem são os outros, quais as regras colocadas no dia a dia, antes comum e recorrente? As respostas começam a fugir e já não sabe mais de nada. As nomenclaturas, as companhias, as definições, os sorrisos. 

Sim, existe a tela que resgata uma espécie de relação, agora de maneira um tanto artificial, é bem verdade. Ela não faz parte da corrente dos que desprezam a tecnologia e suas ferramentas. Contudo, o toque e o calor do corpo são insubstituíveis. E já não tem ideia do que é esse candente elemento que lhe faz tanta falta. Saudade ganha um novo significado, porque nem esta terminologia tão forte consegue abarcar o que passa neste exato instante. É pranto preso na garganta que inflama a face. É descobrir que virou tão literal que agora é confessional em sua escrita. Sempre foi, mas, neste exato instante, tudo parece estar em um nível tão simplório que dá um leve sorriso de decepção. 



"Esta não sou eu", repete. "Quem eu fui?", sussurra. "O que está acontecendo para que eu perca o controle de tamanha maneira que nada mais faz sentido ou parece real?" E tudo gira, em sinfonias cintilantes que querem, desesperadamente, invadir a sua casa e sua alma. Mas, ela nega qualquer aproximação, a não ser que seja para solucionar questões de quem chega, porém nunca para aliviar as suas tensões ou se sentir amada. Ela já não sabe mais como se deixar ser amada. Ela não tem mais coragem de pular da torre. Ela não quer mais. 

Lembra de seu coração estilhaçado e tenta correr para recompor os pedaços jogados no oceano. É como se fosse Sísifo ou, talvez, Penélope fiando eternamente. É infindável a angústia, é infinito o terror, são desesperadoras as horas. Traga o cigarro como se fosse um beijo e volta para o labor eterno e repetido. Volta e se faz útil para o Planeta. Ou assim repete para que continue respirar. Tudo parece injustificável, vazio. A não ser o labor amado. Esse que engasga e sufoca, mas liberta e preenche o tempo. E o sabe fazer. Então, o faz. Para depois chorar, enquanto tenta relembrar de sensações mortas. Enquanto repete palavras, respira fundo e pensa que poderia dormir até o final deste terror, este que até os seus contribuíram para o resultado. 

É tudo tão detestável que se recolhe. Esperando um vento que bata no rosto novamente. Aguardando um ato de concupiscência surpreendente. Uma madrugada feroz. Um amanhecer suave, com os pés na areia e sorvete de manga. Um mar gelado que faz gritar, para, logo depois, entregar risadas. Um jantar quentinho feito pelos companheiros de estrada, em uma data qualquer. Lábios que se encontram e não querem se desgrudar. Abraços redondos que fazem flutuar. Até aquele café amargo e frio que tomava todas as tardes pesam na lembrança adoecida. 

É fim de festa. É fim do mundo. Do seu mundo. Até quando?