quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Farelos e pássaros




 

A ilusão da presença. A certeza da perda inabalável, vinda do passado cinzento. A insistência em dominar situações impossíveis, a teimosia em pisar com os mesmos pés, no mesmo chão. Os olhares e os corpos continuam não se encontrando. A mesma pergunta soa em sua mente tão confusa: por que o futuro não é exatamente como deseja? Ou é o presente? Ou não fora o passado? 

Gostaria de performar um solilóquio infinito, no qual pudesse contar cada gota despudorada de derrota vivida em sua jornada cambaleante. Ainda assim, seria incapaz de elencar todas as misérias de seu tolo coração. As portas se fecharam demais, a voz se calou também, a tempestade cessou e a indiferença deixou sua resposta em formato de lama. 

Coberta até a boca, quase já não respira. No entanto, cata com a língua as pequenas migalhas que voam ao redor. Talvez, antes que sua trajetória se encerre, consiga aproveitar os últimos minutos de farelos jogados e alcançados. Falta apenas um tantinho para que esteja completamente coberta, porém tem certeza que vale mais não se mexer, ficar paralisada, observando o céu de seu sorriso e as pequenas piscadelas vacilantes, de quando em quando. 

Sobre o soterramento, nada faz ou fará.  A firmeza de sua decisão, de sua tola escolha, é feita, pois não cabe espaço aqui para dúvidas. Caso o fizesse, caso se salvasse de sua ruína, a perda das pequenas faíscas seria uma possibilidade. Por isso, segue, dedo por dedo, mergulhando mais fundo e contemplando a luminosidade daquela existência, até o seu último suspiro...

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

A guardiã e sua música


 

O seu sorriso é como brasa que incendeia o coração. A sua voz é como uma canção melódica, que embala os ouvidos em tom de festa. A separação é injusta e lamentável, porém não há escapatória. Os caminhos são tortuosos demais para que possam se encontrar. Neste desmazelo infiel, revive na memória os instantes de júbilo. 

Neste desprezar recorrente, com sabor de fel, deixa que a fantasia se espalhe e a ilusão devore os sentidos. Não adianta acreditar que será diferente a resolução de uma fórmula com números semelhantes. O que resta são os sussurros e olhares da madrugada. A infinita contemplação, que parecia sem fim e acalentava a aura apaixonada. 

Ainda parece um sonho - e mesmo que esta sentença seja melosa, é necessária, porque esta é a sensação exata. Não há um dia que abra os olhos e seu nome deixe de vir na mente, que o pulso não dispare ao recordar seu nome. Guardiã da música, mas também de seus desejos. Fadada a não enxergar adequadamente, cumpre sua ingrata missão, deita em flores de pedra e profere frases malditas. 

Na queda, o último som escutado é o de sua risada. Isto a protege da dor do impacto de perceber que fora sua e já não é mais. Em sua sabedoria, performa a melhor trajetória, seleciona a decisão mais apropriada. Contudo, a vontade é que fosse diferente e a viesse resgatar da derrocada. Se pudesse voltar ao passado e se encaminhar para outros rumos, seria grata e jamais subiria para a torre outra vez. 

No entanto, a simplicidade desta prece não consegue quebrar com a dura realidade vivenciada. São outros tempos, são outras estratégias, outros corpos e mentes. Não há como negar. O controle da narrativa não é apenas seu, tão pouco da outra, que insiste em cavalgar em sua direção. Ainda que rogue, apenas escutará escárnios e palavras ressentidas. 

É preciso seguir. É a única opção plausível, palpável e definida. Enquanto isso, roga aos céus que a esqueça de uma vez. Pede em cada sopro de vento, que a leve para estradas distintas, que seus olhos não se encontrem, que sua voz não seja mais escutada de tão perto, que vivam em plenitude, ainda que distanciadas. Implora, sedenta que, na verdade, seja tudo o contrário, porque é de vício que está falando e não de auroras reluzentes.