quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Sobre um passado que já não sabe mais qual é



Suave, deslizando sobre a neblina, ela caminha em direção do desconhecido. Do outro lado, a sua admiradora observa seus passos, ainda que de longe... Quantos dias irão se passar até que desista de procurar a si mesma dentro das suas confissões? Quanto tempo até que seja rio doce, que desagua sobre os pés e que não deixa o sal se misturar ali, em plena madrugada? 

Houve uma época em que suas palavras chegavam como códigos secretos, no quais somente as duas poderiam compreender, não é verdade? Mas, qual seriam essas duas? Foram tantas. Ela também o é, várias, dançando pela noite e sussurrando segredos para árvores quando chega o amanhecer. Porque foi em apenas um dia que todo seu destino virou do avesso e se viu outra. Ela se viu coberta de leveza, de espiritualidade, de cantos finos, liberdade e vento gelado. 

Os seus pensamentos permaneciam organizados, o horizonte era resplandecente e cada passo dado era quase um salto para o infinito. As possibilidades se multiplicavam junto com seu sorriso. Aliás, com os sorrisos delas, daquelas que foram convocadas pelo destino para que escutassem novamente o badalar dos sinos da praça e decidissem se era hora de recomeçar. Mas, elas já estavam mais sábias e pisaram suavemente pela estrada, até o dia do luar.

Todavia, muito antes, quando ainda estava na varanda, pediu em súplica ao Universo que trouxesse de volta aquela que tomou a sua sorte, em meio ao caos e ao sortilégio da primeira paixão. Certamente começou pela corda bamba, pelo desconhecido, pelo impossível, pelo veneno. Em seguida, encontrou mais tormentas do que portos seguros, até o dia que viu uma borboleta passar por seus olhos e soube que era hora de parar. 

Foi, não foi? Ela renegou o amor e disse em voz alta, da maneira mais audível que encontrou, que tudo havia virado pó, daqueles soprados pelas ventanias de março. Se estava mentindo para si é impossível saber, reconhecer, compreender. No outrora, que estava logo ali, havia um amargor tão intenso, que tudo era fel, descaso, rancor, desistência. É por isso que regressou para o ponto inicial, para aquela que não é fábula, mas parece, para os braços da mulher que já foi banhada pelas flores rosadas, pelos campos verdes e por aventuras leves. 

Por esta razão, sorri, enquanto escreve. Mas, também, porque recorda que, quando viu a entrada de sua casa, guardou consigo a certeza de que ela ali habitava. Porque viu as flores e teve certeza. No entanto, esta foi somente uma confirmação por cima de outra confirmação. E, ainda assim, duvida de si, do seu estado hipnótico, da sua suposta lembrança fragmentada de um acontecimento que talvez nunca tenha existido. 

Mas, o lugar é real. Lá está o relógio, a fonte, a rua estreita onde ficava sua morada e onde viu a sua alegria contagiante tantas vezes. Elas sentaram ali, em uma tarde de primavera, e trocaram palavras banais, ainda que décadas depois, com toda dor do passado, com toda a confusão do que era o antes e o depois, com incertezas e, pior, sem saber que logo em breve, na próxima esquina, estariam sentido algo indecifrável. 

Sim, ela escreve sobre ela, sobre o tempo - este e o anterior - sobre si mesma e aquela que ficou esperando a sua volta. Contudo, ao final desta junção de palavras tortas, resta uma única e derradeira pergunta: Esperará por ela de novo?

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